Tiny Toons, Doçura e a reimaginação de personagens antigas

Em 1990, a série animada de televisão Tiny Toons (Tiny Toons Adventures) fazia enorme sucesso entre as crianças brasileiras. Devo ter visto e revisto muitas vezes seus episódios dublados, inclusive em fitas VHS onde eu e meu irmão gravamos vários capítulos das histórias dos discípulos dos Looney Tunes. Ainda lembro de várias cenas e diálogos engraçados, mas um episódio de que me recordo com carinho e emoção é “Uma Estrela do Passado” (“Fields of Honey” – literalmente, “Campos de Mel”, ou, no contexto do episódio, “Campos de Doçura”, uma referência ao filme Campo dos Sonhos).

Neste episódio, Lilica procura uma figura feminina para adotar como sua mentora, pois entre os veteranos dos desenhos animados só há personagens masculinas. Perninha e Plucky disputam para decidir quem é o melhor entre seus próprios mentores, Pernalonga e Patolino, respectivamente. Eles querem que Lilica dê o voto de Minerva, mas tanto faz para ela, pois não se sente representada. Para decidir, os três vão para o arquivo da Looniversidade assistir a desenhos antigos do coelho e do pato malandros.

Doçura
Doçura

Mas Lilica empreende sua própria jornada de descobertas, e encontra uma fita intitulada “Bosko in Person” (“Bosko em Pessoa”) e datada de 1933, estrelando um cão antropomórfico ainda da época do preto e branco. O que realmente chama a atenção de Lilica nessa fita é a companheira de Bosko: Doçura (Honey, no original em inglês), com quem Lilica se identifica imediata e profundamente, devido às imitações de celebridades que ambas fazem. Ela descobre também que Doçura caiu no esquecimento depois que os desenhos coloridos começaram a fazer sucesso, e Bosko desapareceu em busca dela.

Lilica decide ressuscitar a memória de Doçura, e constrói um cinema para exibir seus filmes. O público acha tanta graça e se diverte tanto com a personagem que esta, bem idosa, que havia entrado na sala de exibição, rejuvenesce diante dos olhos maravilhados de Lilica. Bosko também aparece e volta a ser jovem, e o casal sai cantarolando em direção ao sol poente.

Doce memória

Para mim, esse é o episódio mais emocionante da série (dos que eu me recordo, pelo menos), e até destoa do estilo da maioria dos capítulos, que em geral são divididos em três esquetes. “Uma Estrela do Passado” me tocou de maneira a deixar um vinco em minha memória. O sentimento de nostalgia envolvido no processo de descoberta e renascimento de uma personagem tão interessante, que estava fadada a morrer esquecida, era o que me chamava atenção quando criança, mesmo que na época eu não conseguisse formular assim. Hoje, ao revisitar o episódio, fica clara para mim a temática da representatividade, a busca de uma personagem feminina por um modelo com quem ela possa se identificar, uma preocupação que muitos acreditam ser própria da contemporaneidade, mas que sempre existiu.

Ao rever “Uma Estrela do Passado” estes dias, despertou-se-me a curiosidade por saber se Doçura realmente foi uma personagem da Looney Tunes. Até hoje em dia eu guardara a noção de que ela e seu companheiro haviam sido criados para essa história dos Tiny Toons, como referências às personagens da monocromática Era de Ouro dos desenhos animados, como Mickey Mouse e Betty Boop. Porém, numa pesquisa pela internet eu descobri que realmente havia uma série do Bosko nos anos 1930, e que em alguns episódios ele contracenava com sua namorada Honey. Doçura realmente existe!

Honey

(Daqui em diante, usarei “Honey” para me referir à versão antiga da personagem, e “Doçura” para se referir a sua versão reimaginada.)

Porém, algumas coisas (inclusive alguns problemas) me chamaram atenção e me incomodaram. Embora Bosko e Honey tivessem roupas e cores parecidas com as que portavam em Tiny Toons, eles não eram animais antropomórficos, mas caricaturas racistas de pessoas negras. Suas feições recaem num tropo visual típico das representações cartunescas de pessoas negras nos EUA, uma caricatura conhecida como “coon“. Essa forma de desenhar as feições de pessoas negras as fazem parecer animalizadas, muito próximas da imagem de um macaco, o que remonta a uma série de preconceitos racistas que associam os africanos e seus descendentes à primitividade, à falta de sofisticação, à preguiça e ao gosto irrefreável por bananas e melancias. Essa suposta semelhança entre pessoas negras e macacos é inclusive tema de um dos cartuns de Bosko, “Congo Jazz”, onde o personagem encontra símios que têm fisionomia igual à sua.

Também é notório que Honey, diferente de Doçura, era coadjuvante das histórias de Bosko e não tinha a mesma desenvoltura e independência de sua versão reimaginada. O tipo de humor, aliás, dos desenhos antigos e das supostas antigas histórias de Doçura, a que Lilica assiste, é bastante distinto. Na década de 1930, os desenhos animados eram pouco mais que experimentações com movimento e som, enquanto a Doçura de Tiny Toons lembra muito personagens picarescas como Pernalonga e Pica-Pau.

https://www.dailymotion.com/video/x2aytm7

Comparando os dois vídeos, vemos que a versão adaptada a que Lilica assiste mantém a presença de dança e música e o fato de Honey/Doçura fazer imitações. Honey, em 1933, fez imitações de Billie Holiday, cantora negra norte-americana, e da atriz italiana Greta Garbo. Já Doçura, além de Garbo, homenageia Betty Boop, Harpo Marx e Mae West. Assim, os roteiristas de “Uma Estrela do Passado” tomaram alguns detalhes do desenho original e os extrapolaram para criar uma nova “antiga” Doçura que se caracteriza justamente por ser aquilo que Lilica almejava, uma comediante como ela.

Sherri Stoner

É importante salientar que uma das corroteiristas desse episódio é Sherri Stoner, premiada por seu trabalho em Animaniacs, uma série que é herdeira de Tiny Toons e cuja concepção surge justamente em “Uma Estrela do Passado”, com a ideia de trazer personagens da Era de Ouro para os dias atuais. O fato de ser uma mulher é bastante significativo quando se trata de trazer à tona o tema da representatividade feminina.

Reimaginação do passado e correção política

A mudança da espécie de Bosko e Honey, de humanos negros para animais antropomórficos, foi justificada pela atualização daquilo que era considerado politicamente correto em 1990, em contraste com a mais limitada correção política da época em que a série foi exibida originalmente. Não seria possível, de fato, que Tiny Toons representasse personagens negros estereotipados, e a reimaginação do casal como animais, num modelo mais parecido com a maioria das personagens desse universo cartunesco, faz todo sentido e evita que os jovens espectadores vejam e reproduzam representações racistas nocivas. O episódio está tão consciente a respeito da identidade de Bosko e Doçura que, em determinado momento, Plucky se pergunta se ela é algum tipo de inseto.

Dessa forma, “Uma Estrela do Passado” usa a narrativa da renovação de uma personagem antiga para fazer justamente isso: ressuscitar Honey/Doçura para um formato mais condizente com uma mentalidade que se esforça para ser menos racista e menos sexista. Doçura não é um estereótipo racista, pois pertence a uma espécie de animal antropomórfico, como outras personagens de Tiny Toons e da Looney Tunes, e não remete a ideias preconcebidas sobre identidades étnico-raciais.

(É interessante notar que, mesmo que Bosko e Honey sejam visualmente caricaturas racistas, eles são considerados por alguns como os personagens afro-americanos menos estereotipados da época, pois, apesar da piada visual com macacos em “Congo Jazz”, seu comportamento e seus gostos não remetiam à visão de que os negros eram estúpidos, preguiçosos, malandros e ávidos por melancia, entre outras noções pejorativas do racismo estadunidense.)

Doçura também não decai no tropo da personagem feminina coadjuvante e dependente, uma versão (literalmente) de saias do protagonista masculino. O filme que Lilica exibe inclusive tem o rosto de Doçura na abertura, como se ela fosse a estrela principal. Uma das histórias que Lilica exibe no cinema mostra Doçura sendo amarrada por um vilão (cuja aparência remete muito ao João Bafo de Onça) nos trilhos de um trem, apenas para se soltar e enganar seu inimigo, se disfarçando de Groucho Marx e usando artimanhas, mostrando que não é uma donzela em apuros e prescinde de um herói masculino para salvá-la. Essa cena é uma referência ao episódio “Bosko’s Picture Show”, em que Honey é assediada pelos irmãos Marx, capturada por um vilão estereotipado e enfim salva por seu namorado. Lilica jamais se sentiria representada pela versão original de Doçura. Dessa forma, a reimaginação de Doçura como o próprio tema do episódio aparece explicitamente na metalinguagem dessa trama.

Outro elemento de metalinguagem é quando Ortelino diz que antigamente se caçavam coelhos, ao que Felícia responde que hoje em dia só os apertamos com abraços. Essa é uma pista para se entender que, por trás da transformação de Doçura de uma garota negra para um animal antropomórfico, há uma preocupação com a atualização daquilo que se considera politicamente correto na televisão.

Mary Melody

Podemos nos questionar se a mudança de espécie de Doçura/Honey e Bosko não é uma forma de evitar a problematização do racismo inerente a suas versões antigas. Afinal, trazê-los de volta como animais não obscurece sua história controversa, amenizando polêmicas? Esconder a identidade original de Honey e Bosko poderia ser entendido como um ato de covardia, uma forma de tentar fazer esquecer o caráter racista de sua concepção original. Não seria interessante ressuscitar as personagens como humanos afro-americanos com um design renovado e sem repetir clichês visuais racistas como o nariz que parece um focinho e lábios extremamente grossos? Há personagens humanas em Tiny Toons, e há uma personagem secundária chamada Mary Melody que é uma garota negra sem aquela aparência caricatural grotesca dos desenhos antigos. É claro que a resposta a essas perguntas é: Tiny Toons nunca entrava explicitamente em questões críticas e polêmicas.

“Uma Estrela do Passado” só conseguiu abordar a questão racial de Bosko e Honey de maneira muito subliminar, com um comentário sobre a possível espécie a que pertence Doçura. Isso pode até ser interpretado como uma tirada irônica a respeito das críticas antirracistas, como se o texto do episódio dissesse: “não importa o que é Doçura, o que importa é que ela é engraçada”.

Vale também questionar se o trabalho de revisitar uma personagem antiga e modificar diversos de seus aspectos não seria mais dispendioso do que criar personagens femininas novas. Entretanto, “Uma Estrela do Passado” não ressuscita Doçura para torná-la uma personagem recorrente novamente, funcionando mais como uma homenagem aos antigos cartuns da Looney Tunes. Além disso, penso que a nova roupagem de Bosko e Honey serviu a uma mensagem que tem contornos de alerta para dois tópicos importantes. Primeiro, precisamos de figuras, reais ou fictícias, que sejam modelos representativos para meninas e mulheres (e para pessoas pertencentes a minorias étnicas, LGBTs e portadoras de deficiência). Segundo, precisamos nos lembrar de evitar que personagens clássicas fiquem engessados em formas preconceituosas só pelo bem da tradição, e que eles podem servir ao entretenimento sem precisarem ser um desserviço para os grupos sociais minoritários.

A lógica da renovação das memórias

Ainda é preciso enfatizar que as mudanças no estilo de humor de Doçura e Bosko reimaginados servem principalmente à trama de “Uma Estrela do Passado”. Um dos fatores cruciais para a renovação e o rejuvenescimento de Doçura são as risadas do público. Lilica descobre, por exemplo, que Pernalonga, um cinquentão, mantém a aparência jovem porque as pessoas continuam rindo de suas piadas. Doçura já é uma velhinha, mas quando os espectadores começam a espirrar suco pelo nariz, se estrebuchar e explodir de tanto rir, ela volta a ter a aparência jovem que tinha nos anos 1930.

A explicação real para o esquecimento de Honey e Bosko é que as pessoas hoje em dia não acham mais graça em suas histórias, pois eles foram feitos para um público que não estava acostumado com desenhos animados com som e que se divertia com o simples fato de ver imagens em movimento acompanhadas de música e fala sincronizadas. Em Tiny Toons, ela e seu namorado caíram no esquecimento porque foram ofuscados pelo sucesso de Gaguinho e pelo advento do technicolor. Foi preciso que os roteiristas de Tiny Toons reinventassem Honey como uma personagem que faz piadas atuais para possibilitar a resolução da trama, que dependia de os espectadores contemporâneos rirem dela.

Bosko na versão da MGM

Quanto a este aspecto, o episódio suscita questões interessantes. Por que Bosko e Honey não foram atualizados com o passar do tempo para se adequar ao novo público? Tantos outros personagens se mantêm vivos e jovens, pois se modificaram com o tempo. O próprio Pernalonga é um exemplo disso, pois sua personalidade e seu tipo de humor se adaptaram ao longo da história. Se formos mais fundo, Mickey Mouse e Minnie Mouse, que são contemporâneos de Bosko e Honey, tinham uma estética visual e narrativa extremamente similar à deles, mas são lembrados até hoje nas várias das formas que assumiram ao longo de noventa anos de existência. O máximo que Bosko conseguiu foi um redesign pela MGM, que comprou a personagem em 1933 e o transformou num garoto negro bem menos estereotipado que sua versão da Looney Tunes, mas suas histórias foram descontinuadas depois disso. Sutilmente, “Uma Estrela do Passado” tenta demonstrar que um produto de mídia precisa se modificar para continuar sendo consumido pelo público, e faz isso renovando a aparência e o humor de Doçura e Bosko para as novas gerações.

(Seria válida uma discussão sobre o resgate nostálgico da estética dos desenhos dos anos 1930, com personagens como o próprio Mickey sendo redesenhados com seu estilo de desenho e animação primordiais, numa sátira de si mesmo. O jogo eletrônico Cuphead é um exemplo desse tipo de nostalgia, um video game todo desenhado à mão para se parecer um cartum da Era de Ouro da animação. Se “Uma Estrela do Passado” tivesse surgido nos dias atuais, certamente exploraria muito mais a fundo o resgate dessa estética. Mas esse não é um assunto a ser tratado neste texto.)

Para concluir, percebo como há tantas coisas interessantes suscitadas por um retorno a essa pequena obra dos desenhos animados, mesmo que seja para instigar questionamentos que nem sempre chegam a uma resposta definitiva. Seja como for, Doçura fazendo imitações, cantando e dançando com Bosko, sendo ressuscitada por uma fã que a redescobre nos porões da memória dos cartuns continua sendo uma lembrança emocionante para mim.

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