Una, romance gráfico e empatia
Alfredo Bosi, no artigo “A Poesia Ainda é Necessária?”, afirma que uma das principais funções da linguagem lírica é aproximar o leitor daqueles que estão distante de nós, dar visibilidade aos socialmente invisíveis. A prosa também tem essa capacidade, especialmente se considerarmos a visão de Mikhail Bakhtin sobre o romance (e a linguagem prosaica em geral), segundo a qual esse tipo de escrita tem o poder de veicular vozes diversas e nos fazer compreender diferentes formas de se representar o mundo.
Se nos fiarmos no aspecto polifônico das narrativas em prosa e reconhecermos o modo pelo qual a Poesia transforma nossa visão sobre o Outro, podemos extrapolar para outras formas de arte, como o Cinema e os Quadrinhos. De fato, as boas narrativas áudio-visuais, que utilizam bem a imagem em movimento e o som, permitem que nos coloquemos no lugar do outro.
Basta lembrarmos, por exemplo, de O Homem Elefante (1980), filme de David Lynch que narra o drama de John Merrick, um homem desfigurado que costumava ser atração de um circo de horrores mas foi retirado de lá por um médico que sentiu empatia por sua condição e situação socialmente excluída. No início o personagem aparece sempre envolto em sombras ou escondido do olhar da câmera, a cabeça coberta por um saco para esconder sua deformação e a pecha de monstro sendo carregada como um fardo. Mas aos poucos a narrativa o coloca em destaque para nos revelar um indivíduo sensível e culto, e conseguimos sentir sua angústia quando, acuado diante de uma multidão curiosa e constrangedora, grita: “Não sou um elefante! Não sou um animal! Sou um ser humano! Sou um homem!”
Mexeu com Una, mexeu com todas
Da mesma forma, os Quadrinhos podem servir não apenas para contar boas histórias e nos emocionar com realidades fantásticas ou com a magia da realidade. Eles podem instigar nossa imaginação para que tenhamos uma ideia do que pessoas diferentes de nós sentem e vivenciam, e o romance gráfico Desconstruindo Una faz exatamente isso. E com isso ele cumpre de maneira genial o que José Guilherme Merquior chama de “responsabilidade social do artista”.
A obra de Una é um emaranhado de narrativas que convergem para um mesmo feixe temático: o abuso sexual e a misoginia. A autora nos apresenta eventos de sua história pessoal, notadamente estupros e outras formas de constrangimento, e o modo pelo qual esses eventos a estigmatizaram. Ao mesmo tempo, ela conta a história real de uma série de mulheres assassinadas ao longo de vários anos por um criminoso serial em sua cidade-natal, Yorkshire, na Inglaterra. Perpassando tudo isso, Una mostra diversos dados e informações a respeito de diferentes formas de abusos sexuais em seu país e no mundo.
Quero destacar duas coisas que fazem de Desconstruindo Una uma obra de extrema importância, especialmente levando em conta minha experiência enquanto leitor do sexo masculino (e enfatizando a pertinência da leitura dessa HQ para outros homens).
Em primeiro lugar, a experiência e os sentimentos vivenciados por Una ao longo de sua história são representados não apenas através de uma sucinta narrativa textual, mas principalmente pelo uso de alegorias visuais. Notamos desde o início do livro, por exemplo, a imagem recorrente da protagonista carregando nas costas um balão de fala (recurso típico dos quadrinhos) grande e vazio, cujo peso a faz andar sempre curvada e cabisbaixa. É uma ótima forma de mostrar, através do desenho, o sentimento de opressão advindo do silenciamento, este provocado pela pressão social sobre as meninas abusadas sexualmente, obrigadas a se manterem caladas sobre os atos de seus opressores.
Essa imagem deixa evidente o peso do silêncio que a garota carrega o tempo todo consigo, sem poder expressar tudo o que gostaria de dizer, toda a carga que enche seu balão abarrotado, criando uma figura que denota indefensibilidade.
Também chama a atenção as constantes imagens de metamorfose que a protagonista experimenta, nas quais ela se sente como um inseto, como um ser alienígena, sem conseguir se reconhecer e sem poder se referir a si mesma como digna de humanidade. Essas imagens ressoam fortemente a novela de Franz Kafka, A Metamorfose, que narra a história de um pária que, de tão excluído socialmente, se torna um monstruoso inseto. Una se enxerga em diversos momentos como uma criatura totalmente inadequada, e o contexto em que essa visão aparece nos permite entender que não se trata de um problema inerente a ela, mas do olhar misógino da sociedade em que vive, que a marca com o estigma de “vadia”, que ela nunca chegou a compreender muito bem o que realmente significa. É essa sociedade que manipula sua forma de ver a si mesma, que a faz viver a ilusão de que toda a violência física e simbólica que sofre é culpa dela.
Outra imagem bastante perturbadora é a de um cenário pesadelar e claustrofóbico em que a jovem Una se vê perseguida por lobos, sem ter chances de escapar, no máximo conseguindo evitar ser alcançada pelas bocas famintas, mas nunca podendo relaxar ou descansar, sob o risco de ser apanhada e devorada.
O outro ponto importante do livro é a problematização da contraposição entre, por um lado, o enaltecimento de figuras masculinas violentas e, por outro, as mulheres que foram vítimas dessa violência, sempre invisibilizadas pela mídia.
As mulheres que foram mortas pelo misógino assassino de Yorkshire são retratadas no final do livro, cada uma com sua personalidade única, cada uma apresentada com formas e cores que denotam uma existência muito mais complexa do que simplesmente mais um número no quadro da violência contra a mulher e nas estatísticas de feminicídio e estupro cotidianos. O trabalho de pesquisa da autora sobre essas mulheres faz das páginas finais do romance gráfico a chave-de-ouro do livro. São treze páginas dedicadas a essas treze mulheres reais, onde elas, tão apagadas pela história oficial, ganham substância e se aproximam de nós, mesmo que seus retratos desenhados sejam em parte imaginários.
A correlação entre a vivência de uma vítima de violência sexual com as histórias de mulheres assassinadas nos ajuda a perceber o grande problema tratado pelo livro de Una: a misoginia que constrange diariamente as mulheres, que as destrói por dentro e por fora, que as mata, que minimiza todo esse dano causado e que permite a muitos homens escapar da responsabilidade dos crimes que cometem.
Há algum tempo escrevi um texto sobre empatia e estupro, fazendo um exercício para que homens tentem se imaginar no lugar de uma mulher que é vítima de violência sexual. Esse exercício se baseia na capacidade do Cinema de provocar empatia, de nos fazer sentir no lugar de pessoas que passam por situações-limite. As analogias nos permitem levar o “texto” cinematográfico ainda mais longe. Por exemplo, ao nos vermos no lugar de Kane, em Alien: o Oitavo Passageiro, podemos não apenas imaginar a dor e o sofrimento de ser vítima de uma espécie alienígena mortal, mas também pensar no que uma mulher deve sofrer ao ter seu corpo invadido por um homem, ao se sentir indefesa diante disso e ao carregar no ventre o fruto dessa violência.
Porém, ao nos transportarmos para as páginas de Desconstruindo Una, nos aproximamos ainda mais da realidade das vítimas da misoginia, pois o livro usa uma linguagem que, mesmo por meio de alegorias e metáforas, vai direto ao ponto. As mulheres que conheço que leram essa HQ testemunham que é uma leitura pesada. Para mim foi uma leitura impactante, e só posso imaginar o que elas sentiram e pensaram ao caminhar pela trajetória desenhada por Una. Os homens que se dignarem a experimentar essa obra estão sujeitos a desenvolver um pouco mais de empatia pelas mulheres e se tornarão responsáveis, pelo menos, por se esforçarem para serem pessoas melhores na posição privilegiada na qual o machismo nos coloca.