A verdade que a mentira conta

O filme Mentiras Sinceras (Separate Lies, 2005), dirigido por Julian Fellowes, conta a história de um trio amoroso às voltas com a verdade e a mentira, a honestidade e a traição. Mas não de forma óbvia e previsível, como é o clássico caso de Arthur-Guinevere-Lancelot.

O casal inglês James e Anne Manning vive uma relação estável e morna, quase britanicamente fria. Depois que Anne conhece Bill Bule1, dois acontecimentos começam a esquentar a situação, mas não de forma positiva nem agradável, especialmente para James.

O primeiro é a traição de Anne2, que conhece em Bill uma companhia menos exigente e mais confortável. A reação de James é, essa sim, previsível. Primeiro, ele se revolta (fleumaticamente, é claro, como bom inglês), como quase qualquer homem faria. Depois, como já conhecemos seu temperamento pacato e ordeiro, já antecipamos que ele vai fazer de tudo para que as coisas voltem ao normal, pois ele não suportaria uma separação.

O segundo acontecimento atinge mais diretamente o casal de amantes. Estes atropelam o marido da empregada dos Manning. É então que tem início o amarramento de um nó que aproxima os três e, inclusive, obriga os dois homens rivais a compartilhar de uma intimidade que aborrece muito James.

Se o crime fosse delatado, James poderia até se vingar do homem que seduziu sua esposa, mas se arriscaria a perdê-la para a Lei. Anne se sente duplamente culpada: seu adultério teve como preço manchas de sangue em suas mãos. Porém, ela não consegue abrir mão da felicidade que sente ao lado de Bill, e não sabe viver sem James por perto. (Notemos que William Bule é tratado pelo apelido, Bill, enquanto James não é chamado de Jim, o que denota a personalidade de cada um, o primeiro mais informal, mais irreverente, e o segundo mais formal e sério.)

Pequeno ensaio fleumático sobre corrupção

Na mente de James, ocorre uma confusão de valores. Ele exige que Bill se entregue à polícia, pois considera que é a coisa certa a fazer. Mas quando descobre que sua esposa está envolvida no acidente que matou um homem, suplica a ela que não se entregue.

Os três então selam um pacto de silêncio, um acordo que protege os três das consequências da verdade. E aí nos deparamos com o tema da corrupção e entedemos que, pelo menos na maioria dos casos, o corrupto não tem má intenção, apenas é egoísta o suficiente para não abrir mão do abrigo que a mentira oferece quando cometemos um erro que nos pode ser prejudicial.

A situação se torna insuportável para James, não tanto pela raiva de Bill enquanto seu rival, mas porque este é um sujeito desagradável, talvez por ser sincero demais. Para Anne, o que ela não aguenta carregar é a culpa de um crime contra a vida. Bill é o que melhor suporta tudo, e talvez não se abalasse nem um pouco se a verdade viesse à tona e todos tivessem que assumir suas responsabilidades.

Mas o que torna a situação ainda mais maçante para todos é a descoberta de que o conluio na mentira os faz conhecer melhor a parte podre de cada um, de si mesmo e dos outros. Enquanto mentem para o resto do mundo, são obrigados, para se protegerem, a ser sinceros uns com os outros. Enquanto a mentira os guarda do perigo externo, a verdade os machuca por dentro.

Assim, o filme (que não é uma obra-prima mas pode ser considerada uma obra de arte, especialmente pela fotografia e o belíssimo cenário, com a arquitetura inglesa e flora nativa da Europa insular) nos mostra, através da encenação da corrupção em sua forma mais elementar, que há coisas que, por mais que evitemos conhecer, serão empurradas para fora do porão onde as prendemos.

Mostra também que às vezes é preciso mentir para sermos honestos com nossos próprios desejos, mas é aí que nos deparamos com a liberdade dos outros. Por outro lado, trair nossos impulsos individuais é também uma necessidade quando estamos diante da fidelidade para com outras pessoas.

Avaliação

Trama 3
Atuação 3
Diálogo 3
Visual 3
Trilha sonora 3
Reflexão 3

Notas extemporâneas

  1. O ator que interpreta Bill Bule é Rubert Everett. Nunca havia visto Everett, mas já havia lido sobre ele num gibi da série Dylan Dog. O personagem principal desse gibi é desenhado segundo a aparência física do referido ator, e foi legal poder finalmente ver como seria Dylan Dog em carne e osso.
  2. Há um tema secundário nessa obra, que é o suposto perigo do adultério feminino. Assim como na história do rei Arthur, traído pela esposa Guinevere e pelo seu melhor cavaleiro e amigo Lancelot, e o filme Infidelidade (Unfaithful, 2002), a traição de Anne é como que o prenúncio de toda a tragédia e drama que se seguem. O adultério masculino é normalmente tratado com mais condescendência em obras de ficção, como um acontecimento que afeta só a mulher traída, e mesmo assim como algo que não a fere verdadeiramente.

10 comments

  • Ra!
    Agora tô vendo hehehe.
    esse quadro de avaliações ficou ótimo. hehehe
    o ítem 'reflexão' é que pode trazer algum problema no futuro.
    enfim…

    bom, nem lí o texto. volto com mais calma depois.
    😉

  • A incrivel como as pessoas passam a agir de uma forma diferente quando denunciar algo passa a afetar de maneira direta a sua vida… é ai que a gente começa a ver o lado corruptivel de cada um.
    É uma coisa que eu e um colega estavamos conversando um outro dia… ser corrupto, ou fazer algo ilicito é muito facil, em cada canto a gente tem uma 'oportunidade' e as vezes nem percebemos quando uma situação dessas se apresenta na nossa frente…

    Depois de um tempo sumido, to voltando, hehehe
    Grande abraço Thiago

  • Problema no sentido de dificuldade em se manter um padrão por seu caráter um pouco abstrato.

    É claro que é a sua visão do filme, mas ainda assim, acredito q alguns filmes não são tão óbvios qto "filme para refletir" ou não.
    Parte dessa definição, vem do espectador, da maneira que ele assiste o filme influenciado, inclusive, de sua situação psicológica no momento.

  • Pois é, @Mr. T, todos os parâmetros da avaliação são subjetivos e representam minhas impressões. Nada impede que um leitor do blog comente deixando suas impressões.

    Especificamente, a reflexão é o aprofundamento que o filme me permitiu fazer, a quantidade de temas que suscitou em minha mente. Não perco de vista, é claro, que essa impressão pode vir a mudar quando eu vir o filme de novo…

  • Caro Thiago Leite,
    Amei esse filme, mais ainda depois de ler a sua crítica, tão abrangente e lúcida, repleta de aspectos que me passaram desapercebidos – um deles refere-se ao tratamento dado à traição feminina que tem sempre "um preço" ou consequência para terceiros.
    Por outro lado, notei que vc não comentou sobre a generosidade dos personagens, expressa na dedicação da Anne,ao Bill, nos seus últimos meses de vida, na integridade e perdão da viúva ao tomar conhecimento da autoria do crime e na transformação do James, que perdoa e supera todas as perdas sofridas.
    Discordo da idéia de recorrer à mentira para ser honesto consigo mesmo em seus desejos. È só contar a verdade e arcar com as consequências. Questão de escolha. Não dá para ganhar sempre.
    Que filmaço!
    Obrigada.
    Mariza

  • Olá, @Mariza!

    Muito obrigado por sua visita e seu comentário. Esse filme realmente suscita questões interessantes sobre as relações humanas.

    Você tem razão sobre os sentimentos positivos que os personagens revelaram e/ou desenvolveram. A cumplicidade dos protagonistas não mostrou apenas seu lado podre, afinal.

    Quanto a "recorrer à mentira para ser honesto consigo mesmo", também não endosso essa ideia, apenas argumentei que a desagradável verdade foi uma consequência da cumplicidade na mentira dos personagens.

    No entanto, há coisas que é preciso não dizer para que o convívio social seja viável. Num mundo ideal, todos deveríamos ser honestos uns com os outros.

Deixe uma resposta