Ameaça à Psicologia laica

O Conselho Federal de Psicologia proíbe os psicólogos de emitir opiniões ou tratar a homossexualidade como transtorno. Mas o deputado João Campos (PSDB-GO) apresentou um projeto legislativo que visa a permitir que psicólogos tentem curar a homossexualidade dos pacientes que assim desejarem. O Conselho criticou esse projeto, lembrando que suas normas éticas procuram combater a intolerância.

Essa questão veio à tona motivada pela recente polêmica protagonizada pela “psicóloga cristã” Marisa Lobo, que usava sua profissão para aplicar conceitos religiosos contrários à perspectiva hegemônica na ciência Psicologia, tentando curar homossexuais de sua “doença” e contrariando a ética do Conselho Federal de Psicologia.

Que a homossexualidade não é doença existe um relativo consenso nas áreas da Saúde, especialmente aquelas ligadas à mente, como a Psicologia e a Psicanálise. Desde 1990 a Organização Mundial da Saúde (OMS) não considera mais a homossexualidade uma patologia.

Assim, o que ainda motiva a classificação desse comportamento sob o rótulo de “doença”? Certamente não é nenhuma teoria científica biológica ou psicológica, mas um valor tradicional ligado às noções culturais de masculinidade e feminilidade ideais e, em especial, a ideia bíblica de que a homossexualidade é um pecado, ou seja, um comportamento mau que deve ser corrigido sob pena da punição divina. Quando se transpõe essa ideia para uma terapia psicológica, ela se traduz como “uma doença que deve ser curada”.

É preciso cuidado nessa questão ao levantar o problema da liberdade religiosa. Um homossexual evangélico adulto tem plena liberdade de buscar em sua religião, com ajuda da sua igreja e seus pastores, uma “correção” ou “cura” (espiritual) para assumir comportamento condizente com os preceitos cristãos (não estou dizendo que vá conseguir virar hétero, nem acho que seja fácil). Mas ele não vai encontrar esse tipo de abordagem na Psicologia (ao menos na psicologia feita com responsabilidade ética).

Se um homossexual busca um psicólogo, é papel deste buscar a origem da aflição do paciente, e ela não está no mero fato de a pessoa gostar de parceiros sexuais do mesmo sexo ou no sentimento de inadequação ao próprio sexo. O problema é social, está na discriminação sofrida por aqueles que se desviam da norma aceita, o que leva à dificuldade de autoaceitação.

Qualquer medida que vise ao fim do sofrimento das pessoas com sexualidade “desviante” deve buscar promover a erradicação da ignorância sobre a sexualidade humana, o fim da discriminação e a substituição da desigualdade pela assunção da diferença e da diversidade.

O projeto do deputado Campos faz parte de  uma constante tentativa de políticos ligados ao Cristianismo para introduzir no Estado laico brasileiro os valores de uma parcela da população que não representa a diversidade dos brasileiros. A própria ideia de uma “Frente Parlamentar Evangélica”, da qual Campos é o líder, já é uma afronta à laicidade, pois fortalece um grupo que confunde valores religiosos adstritos à esfera individual com valores democráticos que dizem respeito ao conjunto de cidadãos brasileiros.

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4 comments

  • Acho ótimo vc destacar assuntos como esses, Thiago. Como psicóloga e defensora dos direitos humanos, estou me sentindo frustrada com esse retrocesso. Exijo, e dou voz enquanto representante da classe, que o CFP reforce e faça valer um dos princípios fundamentais do Código de Ética do Psicólogo, exposto em seu Art. 2º – "Ao psicólogo é vedado induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas,
    religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito,
    quando do exercício de suas funções profissionais".

    *Apenas uma emenda: Desde 17 de maio de 1990 (e não 1980) que a OMS não considera mais a homossexualidade uma patologia. Foi a partir desse momento que o termo homossexualismo foi substituído por homossexualidade.

  • Doença ou não, um problema só pode ser definido como tal na medida em que afeta negativamente uma ou mais pessoas. Às vezes, porém, falta o enfoque ou atenção correta para localizar o problema de fato. Realmente, nesse caso, a origem é social: a forma de encarar a homossexualidade cria o preconceito, que deixa ofendido o preconceituoso e afeta diretamente o indivíduo homossexual. Da mesma forma, ser comunista nos EUA no período da Guerra Fria era considerado um problema, porém, uma qualidade na URSS. Em nenhum dos casos pode ser considerado uma doença, mas apenas uma maneira de encarar a realidade política na realidade social em que a pessoa está inserida.

    Ademais, uma "doença" que não afetasse uma pessoa negativamente não seria considerada um problema, nem exigiria uma cura. Vi uma vez, na TV, um homem que possuía habilidades matemáticas que muitos "savants" possuem, sem no entanto ter as dificuldades de relacionamento social e o retardo intelectual desses autistas, situação que, portanto, não exige tratamento ou cura.

    • Em cada caso, é sempre importante perguntar: qual é a raiz deste problema? O terapeuta tem que buscar a cura usando a razão e o método científico, não os preconceitos que correm nas veias da sociedade.

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