No campo da vida real – parte 2

Há 3 dias, republiquei na Teia um texto que havia perdido. Meu amigo Cadu, que já o tinha lido, resolveu comentar na forma de um post em seu próprio blog. Sua réplica foi bastante extensa e me ajudou significativamente a rever alguns aspectos da minha reflexão. Portanto, para aprimorar o pensamento e também para rebater algumas observações de Cadu, resolvi apresentar esta tréplica.

Primeiramente, tentei deixar claro no subtítulo do texto que não se tratava de uma análise crítica. De fato, após reler meu próprio texto, vi-o mais como um desabafo repleto de impressões motivadas pelas minhas emoções, pelo meu próprio habitus, do que como um texto crítico-analítico (embora haja alguns elementos deste aspecto).

Escola de Atenas, de Rafael, e um... menino

Considero as observações de Cadu muito pertinentes. Elas complementam o caráter autoanalítico que tentei impor ao texto. Fizeram-me, sobretudo, dar conta com mais ênfase às falhas presentes. Mas, insistindo numa autoapologia, considero agora que meu texto é uma descrição daquilo que senti no episódio narrado, com todos os preconceitos subjacentes à minha própria visão de mundo, sendo que a parte crítica ficou em segundo plano.

Em certo momento, Cadu se refere a mim nos seguintes termos:

Thiago, aos meus olhos, é o tipo ideal daquele “novo” homem “civilizado” problematizado por Norbert Elias em sua importante obra “O processo civilizador” (1993) – um homem portador de uma economia psíquica voltada para o autocontrole e para o decoro. E concerteza, no circulo de nossos amigos em comum, há um consenso sobre a educação “refinada” e a extrema “polidez” de Thiago.

Essa visão de minha pessoa eu já vi expressa por muita gente, e não posso negar que, às vezes, procuro reforçar esse comportamento. Também é claro para mim que esse habitus “civilizado”, marcado por uma perspectiva e expectativa ético-estéticas das relações humanas (que tem como base um modelo de ética-etiqueta engendrado ao longo da história moderna e contemporânea), orienta minhas noções do que é polido e decoroso, rude ou indelicado.

Ademais, também sei que, embora reconheça que essas noções não são naturais nem autoevidentes, que são arbitrárias e se formam num contexto específico, penso que tenho ao menos duas razões (até onde minha própria capacidade de perceber as coisas me permite) para defender certos tipos de comportamentos em detrimento de outros.

“Em Roma…”

A primeira é que as pessoas que encenaram aquelas pequenas tragicomédias estavam num meio que tem suas próprias regras de conduta, ou seja, um ônibus. Essas regras são criadas não só no próprio uso de tal meio, pelas pessoas que ali frequentam, mas também pelas instituições que regulamentam a utilização do transporte coletivo. Dessa forma, uma etiqueta comum é os mais jovens oferecerem o assento aos mais velhos. Isso é corroborado pelo órgão que regulamenta o transporte coletivo, através de uma sinalização que indica certos assentos como preferenciais para idosos.

Entretanto, é certo que, como Cadu bem aponta, essas regras não são autoevidentes. Nenhuma das pessoas que incorreram, aos meus olhos, em infrações a essas regras era obrigada a saber de antemão que ali se cotuma agir de tal ou qual forma. Por isso, relativizo minha forma de encarar a situação. Ao mesmo tempo que (ainda) acho que uma postura mais madura (que é, no entanto, produzida, mas não deixo de reconhecer como a melhor) é cada um procurar ser diplomático, entendendo as regras do local onde está e “fazendo como os romanos”.

Mas faço outra ressalva: minha expectativa de que as pessoas deveriam agir de certa forma é reflexo da minha própria disposição numa situação análoga, ou seja, a forma como eu mesmo procuraria agir. Por outro lado, também faz parte de meus valores o respeito às escolhas individuais dos outros e a disposição a não condenar de forma apriorista suas ações. Essas duas forças se chocam às vezes. Na situação dada, apesar de eu desaprovar as atitudes descritas, procurei antecipar que poderia haver algum motivo justo para aquelas pessoas estarem agindo assim (pois esse motivo poderia ser justamente a falta de compreensão das regras nativas).

Cosmoética

A segunda razão é que, como já antecipei, considero, mesmo reconhecendo sua arbitrariedade relativa, que há valores universalistas que podem ser depreendidos de uma análise das relações sociais. Tenho assim uma visão evolutiva da ética, e considero sim que algumas atitudes são melhores do que outras e, com o tempo, aprimoraremos mais e mais uma certa ética universalista.

Deparo-me então com outro problema: a necessidade de se conceber uma ética universal também é engengrada local e historicamente. Mas considero que o desenvolvimento dessa cosmoética é tanto o resultado “natural” de uma dinâmica histórica cada vez mais abrangente quanto uma necessidade humana que tem semente ainda nos primórdios da História, e que se expressa por uma conjugação entre liberdades individuais e o inevitável convívio entre os indivíduos.

Essa ética não pode ser descrita de forma exata, pois é ideal. A forma como eu lido com ela é limitada pela minha própria capacidade de entender as relações sociais (de forma tanto crítico-analítica como empática). De certa forma, minhas ideias sobre as situações narradas no meu primeiro texto expressam de forma implícita o que considero ético ou antiético.

Mas, como este texto está repleto de ressalvas, não vou me constranger a incluir uma ou duas mais. Esta ética de que falo também considera que minha reação emotiva foi uma falha. Teria sido preferível, de fato, que eu subjugasse qualquer atitude de apego e, ao mesmo tempo que eu demonstrasse generosidade perdoando aquelas atitudes, também fizesse o exercício de reflexão mais atenta que Cadu sugere, até porque minha formação intelectual me dá condições de fazer essa reflexão.

Sociopatia

Um comentário deve ser feito a respeito do uso que fiz da palavra “sociopatia”. Primeiramente, vamos ao conceito clínico dessa palavra, segundo a Wikipédia:

O Transtorno de Personalidade Anti-Social, vulgarmente chamado Sociopatia, é um transtorno de personalidade descrito no DSM-IV-TR, caracterizado pelo comportamento impulsivo do indivíduo afetado, desprezo por normas sociais, e indiferença aos direitos e sentimentos dos outros. A psicopatia, bastante próxima do transtorno de personalidade anti-social, em geral, é mais severa que este. Na Classificação Internacional de Doenças, este transtorno é chamado de Transtorno de Personalidade Dissocial (Código: F60.2). Indivíduos com este diagnóstico são usualmente chamados de sociopatas. é uma psicopatia generalizada: aversão de tudo e a todos.

Para que eu pudesse fazer um diagnóstico correto de uma sociopatia, como bem indica Cadu, eu deveria ter um preparo de especialista que não tenho, e também deveria ter me detido numa análise demorada, para chegar a à conclusão mais aproximada possível.

No entanto, quando digo que a atitude do homem era “um tipo de sociopatia”, estava empregando a palavra com uma certa “licença poética”. Como o indivíduo agia de forma contrária às regras do ambiente em que estava, vi ali como que uma ectopia, e portanto uma “patologia social” (ênfase nas aspas), menos no cérebo do homem do que na situação criada por ele. Talvez eu devesse ter sido mais explícito.

E mesmo considerando a hispótese de que aquele homem costuma agir daquela forma, amplio a “sociopatia” para qualquer conduta semelhante, ao modo do que faz Freud com a “psicopatologia da vida cotidiana”. Todos nós temos algum nível de “sociopatia”, entendida nos termos que empreguei aqui, quando agimos de acordo com aquilo que é reconhecido como anormal pelas regras sociais de um determinado contexto.

Outro termo controverso que empreguei foi “má-vontade”. Amito que, quando escrevi essa palavra enquanto elaborava o texto original, senti que estava incorrendo numa séria falta. A “má-vontade” do indivíduo que se sentou em dois assentos ao mesmo tempo só tem sentido sob o enfoque da cosmoética sobre a qual discorri acima. De outra forma, não é possível inferir de uma observação superficial a intenção daquele sujeito.

Por exemplo, seu próprio habitus pode estar em ação, e para ele pode ser importante agir assim. Se nos referirmos à forma de agir e reagir de algumas identidades consagradas em nossa sociedade, como o policial e o político, não há “má-vontade” quando o primeiro fura uma fila do banco nem quando o segundo desvia recursos para beneficiar sua família.

Mas o exemplo dos celibatários que Cadu evoca, de sua leitura de Bourdieu, não corresponde exatamente ao que se está tratando aqui. O camponês celibatário é uma instituição, com um nome e uma disposição estruturada depois de muito tempo de consolidação no contexto em que existe. O homem que eu vi n ônibus era inédito, ao menos para mim, e não há nesse meio, até onde sei, um tipo consagrado, a não ser considerando uma noção pré-concebida (baseada naquilo que algumas pessoas consideram certo e errado no ambiente do transporte coletivo) do que é ou não aceitável, sendo que uma pessoa que incorra minimamente na violação das regras é automaticamente nomeado como desviante ou outro termo correlato.

Considerações relativamente conclusivas

É preciso deixar claro que minha intenção inicial ao redigir aquele texto era divagar livremente em hipóteses sobre o comportamento estranho de um indivíduo (depois, acabei incluindo a moça que ofereceu a cadeira sem se levantar). Tanto é assim que apresentei variadas opções e deixei (um pouco) explícito que nenhuma delas era conclusiva.

Como já expliquei, houve uma porcentagem de senso comum em meu texto. Mas, se houve um pouco de motivação pessoal para rotular a conduta do homem de patológica, eu o fiz não de fora para dentro, mas manipulando conceitos dentro do campo, ou seja, classifiquei aquele comportamento de patológico pensando no que é considerado desviante dentro daquela mesologia.

Nesse momento, “normal” e “anormal” para mim não se aplicam. A compreensão de que a normalidade é instituída e a anormalidade é tudo o que não siga aquelas regras arbitrárias já me é familiar desde a adolescência, muito antes de eu ouvir falar em Michel Foucault. Portanto, mesmo que eu insista em usar noções de conduta universalisticamente melhor ou pior, não faço um uso nativo dos termos normal e anormal.

Por fim, se Cadu enfatiza o caráter de admiração-discordância no debate de ideias (e não de pessoas), só posso reiterar. Sua réplica serviu muito para que eu prestasse atenção a certas armadilhas lógicas que procurarei evitar daqui em diante. Quando agimos civilizadamente (!) no debate, contribuímos para que todos, debatedores e expectadores, ampliem as possibilidades de compreensão do universo e seus habitantes.

One thought on “No campo da vida real – parte 2

Deixe uma resposta