No campo da vida real

Ontem*, ao tomar o ônibus para casa, presenciei duas situações que me deram a ideia de escrever um texto na Teia. A primeira foi uma mulher oferecendo o assento a um homem idoso. Este disse polidamente que não precisava. Aquela reiterou dizendo que se ele quisesse poderia sentar no lugar dela. Ao dizer isso, ela nem sequer fez um movimento para se levantar 1.

A outra situação foi um homem sentado à janela da última linha de cadeiras, meio deitado, ocupando dois espaços, absorto na paisagem, sem esboçar a menor disposição para ceder um espaço, sem aparentemente perceber que o ônibus ficava cada vez mais cheio de gente em pé e que agradeceria imensamente a bondade de um estranho que lhe oferecesse um pouco de conforto coletivo.

O sociopata e a sociedade

Eu quase me dirigi ao assento, sabendo que poderia forçar sem esforço aquele homem a se deslocar. Mas decidi observar seu comportamento. Ele só tirou os olhos da janela em um momento, quando se levantou para descer do ônibus. Ele não percebeu quando tirei duas fotos dele e talvez nunca saiba a origem da imagem acima, se é que ele por algum acaso acessa ou vai acessar este blog um dia.

Pensei que aquela forma de agir do homem era um tipo de sociopatia 2. Ele não estava nem aí para os outros, não percebia que, ao se ocupar apenas com sua própria liberdade, prejudicava a liberdade dos outros e causava até um certo mal-estar ao redor de si. Talvez fosse alguém desacostumado a usar o transporte coletivo e, por ser uma realidade nova para ele, encarou a dificuldade de perceber que nas cadeiras cabem duas pessoas, apertadamente, mas cabem.

Ora, quando fazemos uma incursão em território desconhecido, as novidades não são óbvias. Pode-se até desculpar alguém por, tateando, ir aprendendo aos poucos as regras sociais de um novo ambiente. Mas se o indivíduo não se esforça nem um pouco a entender a dinâmica do lugar que está visitando, demonstra má vontade 3.

Há situações clássicas engraçadas na literatura antropológica que ilustram esse tipo de situação. Cliford Geertz conta como os nativos de Bali o ignoraram completamente até o dia em que ele, assistindo a uma briga de galos, proibida pelo poder colonial local, fugiu ao mesmo tempo que todos os habitantes do vilarejo com a chegada da polícia. Ele era um estranho até o momento em que fez igual aos nativos.

Há também um caso pitoresco, contado por Melville Herkovits, em que um grupo de estudantes estrangeiros jantava na casa de uma sueca, no país-natal desta. Ao terminarem, a sueca fez o que seu povo sempre faz: oferecer mais, pois para ela seria rude não o fazer. Todos disseram estar satisfeitos, exceto o japonês, que fez o que seu povo sempre faz: aceitar quando alguém oferece mais, pois para ele seria desonroso não o fazer. O resultado foi que o japonês desmaiou depois de repetir várias vezes a janta.

Bem, o cara do ônibus poderia ter agido daquela forma justamente para testar as reações das pessoas. Talvez ele estivesse com vontade de ver se alguém iria ter coragem ou não de enfrentar o constrangimento que ele criou 4.

Experimentos sociais são interessantes e nos ajudam a entender como as pessoas reagem ao inusitado. Uma experiência muito legal foi feita no Washington Square Park, em Nova York, com um robô de papelão que se locomove com rodinhas. O objetivo era ver se os transeuntes ajudariam o Tweenbot a chegar ao seu destino 5.

Platão imaginou no mito da caverna um experimento desse tipo, onde o filósofo faz as vezes daquele que incita os outros a olharem para si mesmos e para o mundo a partir de pontos de vista inusitados. É esse o papel da Ciência e da reflexão racional e crítica. Quando levamos esses questionamentos para dentro de nós mesmos, sendo ao mesmo tempo experimentadores e cobaias, podemos qualificar nossas autorreciclagens e servir de exemplo de mudança positiva para outras pessoas.

O mito da caverna segundo Maurício de Souza


Notas pós-texto

  1. Penso que o mais polido seria levantar-se ao oferecer. De outra forma, o homem vai demonstrar a polidez de não aceitar. Quando a mulher enfim se levantou, o homem sentou-se sem hesitar. O constrangimento criado pela pessoa que oferece algo e ainda dá as condições para que a outra pessoa desfrute da gentileza é um costume e nem se configura um constrangimento real.
  2. Embora não entenda bem de psicologia social ou de psicopatias sociais para diagnosticar, muito menos numa situação pouco propícia como aquela. Mas, considerando as regras sociais estabelecidas para a melhor convivência entre os indivíduos que tomam um ônibus, ele estava agindo patologicamente. Tenho que considerar também o fato de sua ação ter afetado a mim, e portanto eu ter motivos pessoais para acusá-lo de alguma coisa.
  3. Se bem que essa má vontade pode até ser parte de um comportamento aprendido no contexto em que a pessoa foi criada. Temos que desculpar a pessoa por ela não estar fazendo aquilo de propósito ou entender que no universo de seres sociais deve valer um tipo de ética mais universalista que vise o bem de todos os envolvidos e não apenas de alguns?
  4. Mas ainda há uma última (talvez não) possibilidade: aquele homem poderia estar num dia tão ruim, em que sofreu tanta pressão externa, que se elegeu o direito de um pouco de conforto egoísta. Isso não deixa de ser uma sociopatia como a defini aqui, mas os outros poderiam se solidarizar um pouquinho com ele nesse caso. Mas há ainda uma última (não disse?) hipótese, que complementa a anterior: ele poderia estar tão mal que criou uma situação para que ninguém se contaminasse com suas energias negativas. Nesse caso, ele foi extremamente altruísta. Como foi altruísta o ato egoísta de Grace em Dogville.
  5. A aparência humanóide do bonequinho de papelão, uma caricatura de ser humano, que, diferente de uma estátua, anda como um ser humano e ainda tem um rosto simpático, provoca nas pessoas a sensação de estarem diante de uma pessoa e não de um boneco. Costumamos humanizar, antropomorfizar objetos inanimados e até sentir pena deles. Num ambiente onde talvez as pessoas estejam muito preocupadas com o trabalho e outras questões impessoais, um alienígena inusitado caminhando na rua pode ser uma das coisas mais humanas a ser vistas. Da mesma forma que WALL-E mudou a vida de humanos obesos absortos na realidade virtual. Lembrei de uma tirinha de Calvin em que sua mãe está cortando cebolas, chorando. Ele comenta que deve ser difícil quando as pessoas antropomorfizam as hortaliças.

* Este texto fora publicado originalmente em 21 de abril de 2009 da era comum, e havia se perdido por causa de um problema no servidor de hospedagem deste blog. Portanto, o ocorrido narrado aqui se passou no dia 20 de abril de 2009 e.c.

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